segunda-feira, abril 24, 2006

De 24 para 25 de Abril de 1974 -- o despertar colorido do país cinzento

Sou uma filha de Abril. Em 1974 tinha 9 anos, andava na quarta classe, como se chamava na altura. Lembro-me de sermos obrigados todos os dias a rezar a Avé Maria, mas não me lembro como se reza a Avé Maria. O meu avô, de quem eu gostava muito, era ateu, republicano, filho de republicano, tinha um humor semelhante ao de um Eça de Queiroz, e punha um Zé Povinho de barro a fazer um manguito em cima da televisão. Em minha casa sempre que era noite das célebres “Conversas em Família” era uma risota. Víamos o meu pai, que é comandante mas que nunca foi comandado, gozar com aquela figura cinzenta de grandes óculos quadrados e pequenos olhos mesquinhos, a falar axim, e nós riamos diante da televisão com as coisas que o meu pai dizia e da forma tacanha como o senhor falava. Na sala, anos antes do 25 de Abril, sempre me lembro do quadro com o Che Guevara a preto e branco atrás das grades, o mesmo que ainda hoje tenho na minha sala, já amarelado. Recordo a apreensão da minha mãe em ter aquilo ali na sala com receio que o homem que ia contar a electricidade pudesse ver. Nunca me esqueço de uma noite em que o meu pai recebeu uma visita de um amigo chegado de França que levou uns discos lá para casa para fazerem um serão. Nessa noite não conseguiram que eu me fosse deitar. Escondi-me na sala, debaixo da secretária do meu pai, a ouvir as conversas e as músicas: Jean Ferrat, Jacques Brel, Leo Ferré -- e dentro de um deles um single de capa completamente branca que fazia passar clandestinamente o José Mário Branco: “Um e dois e três/era uma vez um soldadinho/de chumbo não era /porque era um soldadinho/…” Falava da guerra, dos que não querem ir à guerra e dos senhores da guerra que “não matam, mandam matar”. Adormeci já de madrugada debaixo daquela secretária e nunca mais me esqueci daquela noite em que se falou de política, numa época em que não se falava dessas coisas.
Tenho lembranças imprecisas sobre o 25 de Abril mas uma vaga ideia de que
ouvi a notícia de manhã na rádio, juntamente com os meus pais, e que houve uma imensa alegria lá em casa, uma espécie de excitação que vinha de dentro para fora, uma euforia, como se a Liberdade estivesse realmente a passar por aqui! E estava mesmo.

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