
Daí a bocado volta a tocar o telemóvel. Era ela nervosíssima e principalmente irritada porque eram quase horas da aula e ela numa fila do bar a ver os professores a passarem-lhe à frente.
Naquela escola há muita subserviência e escassas regras de democracia. Como querem ensinar a cidadania se os adultos envolvidos no processo educativo, sejam eles auxiliares, professores ou mesmo pais, subvertem essas regras de convívio usufruindo da sua posição superior. Disse-me que as auxiliares do bar atendiam os professores com toda a parcimónia e a eles, alunos, os mandava esperar e estar calados na fila até os senhores professores serem todos atendidos e despachados.
Não tinha conseguido comer e tinha que ir para a aula. Queria protestar. Calmamente disse-lhe que a escola tinha livro de reclamações, se ela o queria usar. Na altura concordou. Mas depois desligou, teve que ir para a aula. Estava quase a chorar de raiva, percebia-se pela voz.
Pouco tempo depois voltou a ligar-me: estava no bar à espera de uma tosta. Tinha dito à professora. E ela tinha-a deixado sair da aula para ir ao bar comer. Ficou mais apaziguada com os professores.
Às 14h30 fui buscá-la, vinha formosa e mais segura. Pelo caminho falámos no episódio e ambas concordámos como era injusto, que cada um deve ter a sua vez e ser respeitado e que ninguém nos deve passar à frente pois perante a necessidade de comer todos somos iguais.
Pode-se abrir uma excepção e atender primeiro um professor que está com pressa porque vai entrar para uma aula. Mas não se deve fazer disso uma norma e permitir que as crianças passem um intervalo inteiro numa fila e que acabem por ir para a aula sem comer. Depois vêem-se queixar que os meninos vão para as aulas sem comer porque os pais não os obrigam a tomar o pequeno-almoço em casa nem lhes mandam um lanche para a escola.
Lá dentro da escola os alunos são tratados como os menos importantes. Já houve Invernos em que a minha filha se queixava que estava frio na sala de aula e que a professora punha o aquecedor virado para si e não para a turma. Não existe por lá nenhuma sala destinada ao convívio dos alunos e cá fora o próprio Agrupamento reconhece que nas áreas exteriores há poucos espaços abrigados. Chegam a abrigar-se da chuva debaixo de umas mesas de ping-pong que há num recreio. As empregadas gritam-lhes que não podem estar nos corredores no intervalo e empurram-nos porta fora fechando a porta à chave.
Sim, naquela escola os alunos andam ao desabrigo, embora esteja numa zona predominantemente de média-alta burguesia. Daquelas em que a maioria dos pais nem vai à escola, são as carrinhas de ATL que levam e trazem as crianças, salvo algumas excepções de avós reformados que se ocupam deles e algumas mães ou irmãos mais velhos que estão por ali por perto.
Aqui, os exemplos de cidadania que vêm em caixotes e em peças separadas da união europeia vão servir às mil maravilhas para preencher a lacuna da falta de cidadania. Vão dizer aos nossos filhos que são cidadãos europeus e, como tal devem obedecer às leis europeias sem as contestar, aliás ninguém lhes vai falar em contestações, coisas como o Maio de 68 estarão abolidos dos programas de História, se for pela vontade do senhor Sarkozy.
Na escola continuaram a estar ausentes os verdadeiros valores e os exemplos éticos da cidadania, que aliás serão ainda mais afastados com a aplicação da lei da gestão e autonomia. Na escola irá funcionar a grande pirâmide bilderberg em que entes de mente obscurecida pela sede do poder e do dinheiro, através de fios invisivéis, mas cada vez mais descarados, enviarão as leis a aplicar na escola que por sua vez serão dadas, pelos ministérios dos governos em conluio, aos directores das escolas, que as farão cumprir aos professores titulares, que exigirão que os outros professores as cumpram dentro das suas salas, vigiando o seu trabalho a pretexto do seu desempenho ser avaliado, que por sua vez as ministrarão em forma de conteúdos aos alunos, nossos filhos.
Os alunos sofrem as consequências, estão na base da pirâmide, não contam como indivíduos mas sim como cidadãos habituados a não ter direitos logo a partir da idade escolar e a calar as trapaças do bar, a suportar e a obedecer à hierarquia. Como não há-de isto gerar a revolta dos jovens?
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