
Quem contou depois a história decidiu que a morte deste homem, auto-proclamado “filho de Deus”, não era só por si suficiente para fundar uma religião. Por isso ele teve que ser ressuscitado, ou seja, o seu corpo desapareceu, segundo consta, e houve depois disso quem o visse, tendo os apóstolos decidido espalhar a notícia. Este prodígio foi considerado por todos os que tomaram conhecimentos dele um verdadeiro milagre, o milagre da ressurreição. Dá ideia que foi aliás este episódio que verdadeiramente fundou esta religião porque até ao momento da ressurreição só uma pequena minoria que o conheceu de perto considerava Cristo um ser divino, por aquilo que ele dizia e também pela forma como se dizia que multiplicava e dividia o pão. Foi preciso que se espalhasse a ideia de que Cristo tinha ressuscitado para que surgissem mais crentes na sua palavra, o que é uma coisa extraordinária, pois se tivessem acreditado logo que ele era filho de Deus, não lhe teriam exigido passar antes por toda essa provação até finalmente acreditarem nele. Ou seja, houve mais pessoas a acreditar num fantasma do que num homem, o que para a época não era de estranhar. Quem já alguma vez leu hagiografias sabe que os santos andavam sempre a alucinar: tinham visões e viam aparições. Nesses tempos a vida não era fácil, não havia televisão mas os homens já eram dotados de imaginação e, dizem que a barriga vazia e o sofrimento físico podem potenciar perturbações psíquicas.
Quando Cristo perguntou no auge do seu sofrimento “Pai, porquê eu?”, não sabia já de antemão que tinha sido o eleito e com que finalidade? Terá sido esta pergunta realmente ouvida sair da boca de Cristo pelos que assistiam ao sacrifício ou terá sido algo mais que acrescentaram depois à história, para dar apenas mais um toque ao lado humano de Cristo? Ou terão estas palavras escapado às sucessivas censuras eclesiásticas, não se tendo nenhuma delas apercebido o quanto esta interrogação feita por Cristo (serão talvez estas as suas últimas palavras!) pudesse vir a pôr em causa a sua fé incondicional de que aquela seria a melhor forma de fazer passar a mensagem divina aos homens de boa vontade.
Quando ainda hoje repetimos “Porquê eu?” estamos a dizer qualquer coisa como: “porra, por que é que hei-de ser eu a fazer este papel?” ou “epá, escolham outro!”. E não saímos por aí a dar a outra face e, por muito que nos prometam vida eterna, não saímos por aí a provocar desacatos para nos arranjarem uma cruz qualquer para carregarmos, nem morrermos de paixão pela humanidade. Na verdade nunca houve cristãos porque os que dizem que o são, não se comportam como Cristo, longe deles imitarem o modelo. Cristo deve ter existido. E se por ventura ressuscitou e pode ainda hoje ver a sua obra, a cristandade que se gerou a partir dele, deve estar muito decepcionado com a interpretação que fizeram da sua história. Se, como homem que era, sofreu os horrores da cruz deve lamentar ainda ter julgado que o exemplo do seu sofrimento serviria para melhorar os homens, ainda que se lhe acrescentasse a ideia de uma recompensa no momento da ressurreição.
Até hoje nunca mais ninguém viu ninguém ressuscitando, a não ser aquele episódio que me contaram no outro dia de uma velha que acordou quando a família a velava. Uma complicação. A certidão já passada, o filho sem posses gastou uma dinheirama para vir de França assistir ao velório e no fim de contas a mulher acorda e logo ali, dentro do caixão já pago, para deixar toda a gente encavacada. Não se faz. A modernidade não lida bem com a ressurreição.
Contra tudo e contra todos, o melhor é permanecer vivo e poder escolher um metafísico ovo de Páscoa.