sexta-feira, dezembro 07, 2007

Três episódios de apropriação para o bom entendedor

Havia uma rua que era de todos mas de repente veio uma empresa e tomou aquilo ali tudo como sendo seu. Caixas automáticas de pagamento se multiplicaram pelas ruas, como cogumelos. As pessoas iam trabalhar todo o dia e todo o dia passavam a alimentar a máquina de moedas. A empresa usava métodos drásticos de bloqueio invertendo as próprias leis da propriedade privada. A propriedade que era pública passou a ter as apertadas leis da privatização: o usufruto da rua deverá ser pago, eis a sua filosofia. A empresa, agora dona da rua, tem o direito de cobrar e bloquear a viatura alheia como um instrumento mal arrumado do lucro certo da empresa. Ao seu serviço a força da lei que se lhe moldou, legitimando essa empresa de poderes para manipular as viaturas dos infractores, o que lhes sai bem mais caro do que a disciplina da moeda na ranhura todo o dia.

Havia um teatro que era de todos. O teatro deixou de ser de todos e passou a ser propriedade de uma empresa privada. Agora, se as pessoas precisam de usar aquele espaço para organizar um evento, têm que lhe pagar. Havia uma comissão que queria organizar um encontro e um presidente que acedeu em pagar o aluguer do teatro para que o encontro lá se realizasse. Eternamente grata a comissão fez o encontro mas sempre fica alguém pensando se terá havido quem pagasse tal flor. Duas palmadas nas costas foi o mais que lhe terá custado. Porque uma empresa privada há-de sempre ficar grata a quem lhe entregou em mãos o tal teatro. Que par de luvas receberá este Natal para repartir com os pobres e com as instituições sem fins lucrativos. Até quando podemos contar com tais beneméritos?

Havia uma biblioteca que recebeu apoios para fazer um lindo projecto de sonho e de magia. Mas o tempo passou e ninguém se resolvia a pegar no projecto. O tempo urgia porque os subsídios que vêm de fora trazem consigo prazos de cumprimento. Coisa estanha por aqui, essa do cumprimento! Mas eis que de repente alguém se lança na aventura voluntário. Mas vinha mesmo a calhar, como caído do céu e sem custos. O projecto ganhou pernas para andar e fez-se com muito trabalho, muitas noites de pouco dormir e de muito dar ao dedo. No fim estava pronto. Passados tempos, o voluntário deu noutra coisa na vida, era chegada a sua vez de organizar a festa e lembrou-se que a cooperação sempre foi a melhor das ideias. Quis trazer aquela gente para fazer a festa, por momento julgou que vivia no mundo das parcerias e das trocas culturais. Mas tudo custava afinal algum dinheiro e ninguém fazia a festa pelos bonitos olhos das crianças, muito menos dentro desse município. Havia que rentabilizar a formação dada e arregaçada por lufadas frescas de dinheiros vindos do exterior. E, cada um por si, nenhum por todos, agora não havia quem não tivesse o seu preço. Acordou-se no negócio e uns pagaram para os outros. Mas no final não foi isso que ficou a doer mas só aquele esquecimento de ninguém ter reconhecido as voluntárias horas extraordinárias. Nem mesmo quem esteve no barco e que o viu ser posto no mar, passar a tormenta e navegar, trazendo riquezas de páginas vindas da boca de memórias longe. Esse apagamento, e os louros aos que nada fizeram, fazem deste episódio mais uma triste história para contar e desencantar...

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