sábado, maio 03, 2008

Maio de 68: a ressaca dos 40

Grande jantarada a de ontem, meus amigos. A ressaca foi fatal. Acordei de mal com o mundo, com um mau humor do capeta, como diz uma amiga brasileira. Quando se passa uma noite na chalaça, depois já se sabe que vem o reverso. Claro que as ressacas são saudáveis, provocam uma consciência da realidade mais aguda, como o Fernando Pessoa dizia, merda, estou lúcida! E a lucidez em dia de ressaca é uma coisa terrível porque não poupa nada nem ninguém.
Vejam lá que acordei a ouvir no rádio uns senhores a falarem do Maio de 68. No meio de muitas baboseiras que para ali disseram, fui esperando que pelo menos um deles aflorasse a questão do Maio de 68 ter sido uma reacção colectiva dos jovens universitários franceses contra o consumo e contra as malhas do sistema capitalista. Mas não, quem se presta agora a reescrever a História, prefere lembrá-lo como um movimento dos miúdos maus das famílias boas de onde sairam pessoas que hoje em dia estão no poder (e até no governo Sarkosy), como se de todas as gerações não saissem sempre pelo menos uma boa meia dúzia de filhos da puta traidores das causas que antes perfilhavam. A tendência (e a preferência) é esquecer os outros, a massa, e lembrar estes.
Dei mais uma volta na cama, sem sentir o peso de estar a ser responsável por uma família destruturada: as crias tinham ficado entregues em boas mãos, desta vez não esperavam o pequeno-almoço à hora do almoço, como acontece às vezes ao fim de semana. Confesso que mesmo assim não foi fácil reagir, talvez até desta vez tenha sido mais difícil. As ressacas vão sendo cada vez mais severas, como a lucidez resultante delas.
Durante o dia giboiei pelos sítios, sem pachorra para nada. Não me apetecia sol, nem ar livre, nem comida. Só uns tragos na Boémia me souberam bem. Voltei para casa ansiosa por me estender na cama. Li uns artigos sobre... o Maio de 68. A mesma sensação voltou: dizia um dos artigos que a miúda de uma fotografia que simbolizou a presença das mulheres no Maio de 68, encavalitada aos ombros de um colega, de bandeira em punho, no meio da multidão, afinal doiam-lhe os pés e estava ali porque lhe disseram: se me pegares na bandeira, deixo-te trepar para os costados e carrego contigo nesta confusão. O jornalismo cospe no próprio prato onde come e vem advertir-nos para o perigo das imagens poderem ser enganosas: a partir de agora qualquer imagem não passa de uma falácia tão grande quanto a sua máxima "uma imagem vale por mil palavras". Eu diria antes: uma revolução vale por mil imagens. Afinal aquilo do Maio de 68 foi uma grande banhada... e nós que andámos a vida toda à espera que os jovens estudantes voltassem à carga, assumindo um dia destes uma posição consciente em relação ao sistema económico e político! Porque os períodos de revolta são cíclicos e as contestações dos jovens de 68 ainda não se cumpriram, tendo-se ao contrário tornado mais urgentes. O meu pai costumava dizer que se não se é revolucionário aos vinte anos, nunca mais se é revolucionário. O que estes artigos nos vêm dizer é que aquilo era tudo meninos filhos de gente bem, a estudar na Sorbonne com o dinheiro dos papás e que assim que herdaram o império, deitaram mãos à obra deixando as convicções de parte. Não duvido que em alguns casos isso tenha acontecido, mas foi só isso que aconteceu? As revoluções são momentos de ruptura, gritos de revolta contra o sistema instituído. Irrompem para afirmar o seu não absoluto a uma realidade que não aceitam, com a qual não querem pactuar.
Evidentemente não vivi o Maio de 68, mas assisti a uma revolução em que, logo a partir do primeiro momento em que aconteceu, as massas sairam para a rua gritando o seu descontentamento com o que tinham antes e atirando cravos a tudo o que lhes acenasse com a liberdade desejada. Correu mal? Enquanto durou, correu bem, mas durou pouco. Vieram depois os políticos tomar conta da revolução, instituí-la, e ela acabou, fim do processo revolucionário. Chegámos ao ponto a que chegámos, é verdade, uma escória apoderou-se do sistema, alguns até foram maoistas! São os tais oportunistas sedentos de poder que tanto empunham uma bandeira como vendem a alma ao diabo. Mas isso nunca lhe há-de tirar o mérito que teve: quem assistiu, quem hoje vê as imagens, pode ver as marcas de uma enorme felicidade nos rostos e a expressão da enorme solidariedade que então se estabeleceu: parecia que naquele momento todas as utopias se podiam concretizar. Depois veio o Soares, o mon ami Miterand , os fundos da CEE, a destruição de todos os recursos em troca de dinheiro fácil. Lançaram o engodo e acenaram-nos com promessas de melhoria de condições de vida. Depois de nos lançarem a corda foi só puxar o laço. E daí em diante foi de mal a pior, até ao descalabro em que nos encontramos. Aconteceu cá e aconteceu um pouco por todo o mundo, com todas as revoluções.
Se hoje o povo está novamente carrancudo e infeliz é porque nada daquilo se cumpriu. Se o jornalismo se presta a deturpar a História é porque sabe que a memória é curta e manipulável. Se em França está um Sarkozy no poder e por todo o mundo os líderes são seres repelentes e corruptos é porque o Maio de 68 não se cumpriu. Vivemos atolados no mesmo sistema capitalista anterior a todas as revoluções, apenas mais refinado que, como um pântano, nos suga e nos oprime.
Como ontem cantava o Zeca a revolução é para já. Reafirmo e acrescento: a revolução é para sempre!




5 comentários:

Anónimo disse...

é amiga...é realidade é dura...e a lucides ainda é pior...
Solução: embriagarnos com sonhos e continuar a caminhar...falando e fazendo a nossa revolução...
Feliz dia das Mães
jinhos

Pata Negra disse...

Pela fluidez e pela simplicidade da verdade do texto um conselho:
Kaótica ressaca-te mais vezes!
Um abraço em revolução permanente

Anónimo disse...

Que as ressacas, as tuas ressacas se prolonguem para sempre!!!!!!

Belíssimo texto

Parabéns

BJS

Zorze disse...

É por isso que prefiro Whisky, amigo de longa data e nunca nos deixa mal. No dia a seguir estamos prontinhos para outra.
O texto é muito bom, mas está aí uma raivazinha latente.
Amiga, o mundo é mesmo uma Casa de Gente Doida.

Beijos,
Zorze

Rui Ruiz disse...

:

http://poemassemdono.blogspot.com/2011/05/hora-do-brasil.html

...<¨>

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