quinta-feira, outubro 09, 2008

«A estupidez não escolhe entre cegos e não cegos»


Trailer do filme “Ensaio Sobre a Cegueira”


Quando um dia destes ouvi a notícia fiquei atónita, achei um enorme disparate: como pode um filme tornar-se polémico ao ponto de fazer uma quantidade de pessoas cegas se revoltarem contra ele? Mesmo no sentido físico da questão: como pode um filme levar cegos a ir “vê-lo” para depois se rebelarem contra o que… não viram (!)

Não li ainda o livro do José Saramago (e quem não lê é como quem não vê), mas pela actualidade da temática (ver sinopse), já está na calha para ser lido muito brevemente. Imagino-o altamente simbólico e altamente realista, a um tempo. Mais uma vez Saramago parte de uma situação imaginária, uma estranha doença, tão possível como tantas outras, como a morte sair à rua e não matar ninguém, outra situação simbólica e no entanto real enquanto remete para a possibilidade que a medicina tem cada vez mais de prolongar a vida às pessoas.

Voltando à questão dos protestos, a qual me inquieta por haver quem proteste por tomar esta doença por uma cegueira real, física, igual à sua própria, e não simbólica, como seria de esperar, dado que toda a Literatura Mundial está cheia de referências simbólicas, visão/cegueira, luz/trevas, de conhecimento/ ou de ignorância. O motivo dos protestos são neste caso uma “cegueira” semelhante à da Igreja Católica que insiste em tomar à letra o texto bíblico, em vez de o considerar um texto altamente simbólico, tendo esta sua obtusa obstinação atrasado em anos a concepção de ser a terra a girar em torno do sol e não o contrário e a sua teima queimado inocentes na fogueira.

Saramago é autor de obras construídas à volta de uma simples ideia genial pela originalidade e que a partir dela consegue desenvolver uma trama de implicações que dão corpo aos romances. Partindo de uma simples formulação do tipo: e se de repente as pessoas todas deixassem de ver claramente?; ou e se de repente a morte não cumprisse mais a sua função?; ou e se os eleitores votassem massivamente em branco?, Saramago constrói os seus romances com base na observação da natureza humana, dando-lhes assim uma dimensão universal e humanista (e desumanista?)

No Ensaio sobre a cegueira há contudo lugar para o ser excepcional, aquele que não é acometido pela mesma doença que os outros e que procurar reatar com a “normalidade” perdida.

Não são os cegos que são tratados como “monstros”, como afirma o presidente da Federação Nacional dos Invisuais, Marc Maurer, "O filme retrata as pessoas cegas como monstros e isso é mentira. A cegueira não transforma pessoas decentes em monstros", indignou-se Marc Maurer. Já na literatura clássica os humanos eram acometidos de uma cegueira súbita deixada cair sobre os seus olhos pelos deuses enganadores. Quem assim “vê” a intenção da obra, está apenas a ter uma visão tubular, identificando aquela cegueira alegórica com a verdadeira cegueira dos cegos (que nunca viram ou que a dado momento deixaram de ver por qualquer doença física ou mesmo psicológica). Saramago comentou a atitude dos que prometem continuar a protestar e a boicotar a apresentação do filme nas salas de cinema dos EUA impiedosamente à sua maneira:

"É uma associação, ou associações de cegos que decidem, em primeiro lugar, ter uma opinião sobre um filme que não viram - e isso infelizmente, sobretudo para eles, que não podem ver. Alguém lhes terá dito que o filme é violento, que os cegos se portam mal, e eles reagem de uma maneira absolutamente, enfim, não sei como chamar-lhe", continuou.

"A estupidez não escolhe entre cegos e não cegos. É uma manifestação de mal humor, assente sobre coisa nenhuma, e pronto, acabou, nada mais" (José Saramago)

Neste caso confirmam-se dois provérbios populares: o melhor cego é aquele que não quer ver e em terra de cegos quem tem um olho é rei. O primeiro dedico-o ao senhor Marc Maurer e a todos quantos insistirem em não ver o carácter alegórico d@ obra/filme; o segundo dedico-o ao José Saramago que, independente de se gostar ou não dos seus livros, é inegavelmente um grande escritor do nosso tempo.

3 comentários:

ferroadas disse...

Olá amiga

Já foi amiga, para alguns já não é.

BJS

Abrenúncio disse...

Lê, lê o livro, que vale a pena. Foi, para mim, um dos melhores livros que já li até hoje. Confesso que alguns livros do Saramago me causaram algum fastio, refiro-me por exemplo ao Memorial do Convento, que comecei a ler e não acabei, mas este li-o num dia, de rajada.
Saudações do Marreta.

aDesenhar disse...

Marc Maurer é um ignorante,
e se a mulher dele é loira
provavelmente também se terá insurgido contra o Gabriel o Pensador, quando este lançou no mercado a música "Loira Burra".
"...e pronto, acabou, nada mais"

:-)

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