Devoro o texto do papel amarelado, a caligrafia rápida e por vezes corrigida causa-me algumas dificuldades, bem como a falta de visão para ler que me começa a atormentar. É um papel no meio de outros papéis soltos, não numerados nem precisamente datados, um molho deles que encontrei no chão atrás do sofá no dia fatídico em que fui lá a casa. Os outros papéis teus continuam de acesso vedado, algures no meio de uma confusão reinante. Dizem-me que têm coisas íntimas que a mais ninguém interessa e eu tenho pena que se vão deteriorando e baralhando ainda mais no meio do caos.
Mas este consegui recuperar quase por inteiro e por isso te recordo aqui através dele, no dia do teu aniversário, apesar de quase de certeza ter sido escrito numa fase longínqua ao meu nascimento:
«Abril
3-3ª
Subindo o Chiado, às 2 horas da noite páro junto à montra da livraria Portugália e acendo um cigarro. A rua está deserta, silenciosa e um pouco escura apesar dos candeeiros de iluminação pública.
Continuo a caminhar! Reparo num vulto que acabou de dobrar a esquina da rua Garrett e se aproxima na minha direcção, impreciso ainda, oscilante, aos tombos. A distância diminui. Vejo que se trata de um bêbado. O homem está esfarrapado, apresenta um aspecto miserável e faz milagres de equilíbrio para se manter em pé.
Quando passa ao meu lado percebe que eu vou a fumar, aproxima-se e pede-me lume. Estendo-lhe o meu cigarro aceso e ele segura nos lábios uma ponta de cigarro tão pequena que eu tenho medo de queimá-lo.
Depois de alguns esforços, o homem consegue puxar uma fumaça, fita-me com os olhos embaciados e resmunga um obrigado. Vou para me afastar mas o bêbado segura-me por um braço. Fico à espera, um pouco surpreendido. Então ele aproxima o rosto do meu rosto e pergunta baixinho:
-- Sabe quem eu sou?
Penso que me vai contar uma história de opulência antiga, recordar tempos melhores e sinto vontade de me ir embora; Mas ao lidar com bêbados, a seguir nunca se sabe o que vai acontecer e acho melhor responder à pergunta:
-- Não, não sei...
O homem emite um risinho de triunfo, mede-me de alto a baixo e grita:
-- SOU EU MESMO!
Afasta-se aos tombos. E eu fico a pensar na força moral desta estranha criatura que nem na miséria renuncia à sua própria personalidade!»
«Abril
3-3ª
Subindo o Chiado, às 2 horas da noite páro junto à montra da livraria Portugália e acendo um cigarro. A rua está deserta, silenciosa e um pouco escura apesar dos candeeiros de iluminação pública.
Continuo a caminhar! Reparo num vulto que acabou de dobrar a esquina da rua Garrett e se aproxima na minha direcção, impreciso ainda, oscilante, aos tombos. A distância diminui. Vejo que se trata de um bêbado. O homem está esfarrapado, apresenta um aspecto miserável e faz milagres de equilíbrio para se manter em pé.
Quando passa ao meu lado percebe que eu vou a fumar, aproxima-se e pede-me lume. Estendo-lhe o meu cigarro aceso e ele segura nos lábios uma ponta de cigarro tão pequena que eu tenho medo de queimá-lo.
Depois de alguns esforços, o homem consegue puxar uma fumaça, fita-me com os olhos embaciados e resmunga um obrigado. Vou para me afastar mas o bêbado segura-me por um braço. Fico à espera, um pouco surpreendido. Então ele aproxima o rosto do meu rosto e pergunta baixinho:
-- Sabe quem eu sou?
Penso que me vai contar uma história de opulência antiga, recordar tempos melhores e sinto vontade de me ir embora; Mas ao lidar com bêbados, a seguir nunca se sabe o que vai acontecer e acho melhor responder à pergunta:
-- Não, não sei...
O homem emite um risinho de triunfo, mede-me de alto a baixo e grita:
-- SOU EU MESMO!
Afasta-se aos tombos. E eu fico a pensar na força moral desta estranha criatura que nem na miséria renuncia à sua própria personalidade!»
(texto da "arca" do meu pai)
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