sexta-feira, maio 12, 2006

Os Jogadores de Xadrez -- Ricardo Reis

Os Jogadores de Xadrez --

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam

O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram

As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento

Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram

Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,

Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro

Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse

A liberdade e a vida.
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro

E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,

O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil

Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,

A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,

Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.

1-6-1916

5 comentários:

Iris disse...

Ola boa tarde...

Adoro os Poemas de Fernando Pessoa, mas mto sinceramente prefiro-os ortonimos do que heteronomos...

Gostaria de entender este poema, será que ha alguem que mo conseiga explicar?

bjo0

Anónimo disse...

Este poema é simplesmente uma das maiores criações de fernando pessoa enquanto ricardo reis.
Expressa de um modo unico a crueldade das sociedades que funcionam como meros espectadores enquanto outros morrem.
Para entender melhor, transportemos essa situação para algo vulgar nos nossos dias: diariamente somos bombardeados com centenas de situações de guerra, mortes, atentados... nós por momentos ate podemos ficar chocados, mas a verdade é que assistimos como meros espectadores. Mesmo sabendo que estão a morrer pessoas nós continuamos tranquilamente em nossa casa, tal como os jogadores de xadrez continuam o seu jogo.

mister jones disse...

Um poema é susceptível a várias interpretações, e como tal a minha difere da anterior. Este poema, uma ode de Ricardo Reis, expressa inigualávelmente a sua filosofia. Este heteronimo afirmava-se um epicurista e um estoica, guiando-se pela frase do grego Horácio, "Carpe Diem". Reis ambicionava a ataraxia, a libertação dos prazeres, do terreno, do mundano, de tudo o que o podia fazer sofrer no presente ou no futuro. Defendia que a sabedoria cinsistia em deixar passar a vida, sem a viver, em saber disfrutá-la. E assim são os jogadores de xadrez, que enquanto uns matam e outros morrem, uns gritam e outros choram, eles, impávidos e serenos, jogam o seu jogo, que no fundo é a guerra relatada, sem a ela se oferecerem, sem a viverem, só a disfrutá-la, e deixá-la passar.

Anónimo disse...

o comentário do anónimo esta completamente errado! não faz sentido nenhum, essa explicação, basta saber um pouco da hst da vida de Reis para conseguir interpretar este poema correctamente. E o mister Jones consegui-o.

Anónimo disse...

e lixado anonimo

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