quarta-feira, abril 04, 2007

Retrato do país das meias tintas

Costumo dizer que se ainda alguma das chamadas "conquistas de Abril" nos resta como tábua de salvação, ela é sem dúvida a da liberdade de expressão. Pelo menos por enquanto ainda se pode falar e, nem sequer se paga imposto. Claro que as pessoas, principalmente depois que Portugal entrou para a CEE (actualmente degenerada em União Europeia), de repente descobriram que tinham poder de compra, nem que fosse à custa do endividamento, e que pagar lhes dava um certo poder. Por isso passámos a preferir pagar para falarmos uns com os outros, optando por usar os telemóveis e os SMS's e por nos comunicarmos pela Internet, serviços que nos permitem "falar" até não poder mais e cuja publicidade enganadora nos cria a sensação de que temos toda a liberdade do mundo de passarmos horas e horas a comunicarmos por um preço irrisório. Banimos das nossas vidas o prazer de nos encontrarmos com os amigos nas mesas de café para, olhos nos olhos, concordarmos como este país está uma choldra. Cada vez esses momentos são mais raros e chega até a haver casos em que, quando as pessoas se encontram corpo a corpo, ficam assim meio à toa sem saberem o que dizerem umas às outras. Como se lhes faltasse o suporte, como se o telemóvel funcionasse como uma espécie de cigarro desbloqueador de inibições. Ao telemóvel, pelo computador, blá blá blá, palavra puxa palavra, conversas ininterruptas; cara a cara, então tudo bem? Tudo bem. E está tudo dito, adeus que se faz tarde, logo ligo-te. Xau. Foi o que ganhámos com este estado de choque tecnológico.
Voltando à questão inicial da nossa liberdade de expressão: será que ela existe realmente ou tornou-se deveras virtual? Pois ao que parece mesmo as palavras mais fortes tendem a modificar-se. Ouviram hoje aquela do Carvalho da Silva a apelar à "greve generalizada"? Mas afinal o que é isso de "greve generalizada"? Será uma greve de generais? Ou uma espécie de senha para se referir ao que em tempos se exprimia claramente por "Greve Geral" e que passa agora a assumir esta forma velada? Será realmente liberdade de expressão não chamarmos os bois pelos nomes? Somos assim tão púdicos e preconceituosos em nomear formas de luta meritoriamente conquistadas e tememos reivindicar publicamente o nosso direito ao trabalho, à saúde, à educação digna e de qualidade? E tão debochados que acham por bem nos oferecerem declaradamente a possibilidade de excluir da factura as nossas pequenas perversões voyeristas, acenando-nos com uma publicidade pulha e cúmplice, mais pornográfica que toda a pornografia alguma vez vista às escondidas.
Somos um povo mentiroso e cobarde por natureza. Capazes de enganarmo-nos até a nós próprios e nem isso admitimos. Temos medo de assumirmos seja o que for, muito menos qualquer tipo de compromisso, de tomar uma posição clara, de lutarmos pelos nossos direitos. Preferimos perdê-los calados e carpirmos depois, quando já for tarde demais. Gostamos mais de viver atolados na mentira do que admitir que nos enganámos. Daí esta maioria parlamentar. Daí este governo. Daí este primeiro-ministro com as suas crescentes sondagens. Daí um fraco em Belém. Daí este país burlesco e grotesco que mete dó.

5 comentários:

rendadebilros disse...

Disseste bem pelo menos "por enquanto"...
Já te contei aquela cena dos alunos que estavam lado a lado na sala de computadores e entraram na net e numa sala de conversação para falarem um com o outro? E mesmo assim para repetirem em versões limitadas pela escassez de ideias e de vocabulário que as aulas eram uma seca??? Até para dizerem isto se socorrem da net...Ninguém percebeu na realidade que , para não dizer nada, o silêncio continua a ser de ouro? E a cara que as pessoas põem , quando eu digo que não ando com o telemóvel e é como se não tivesse? Mas que, se quiserem falar comigo, deixem recado no voicemail que eu ligo-lhes em seguida... Desistem logo da conversa...porque também se criou a ideia de que toda a gente tem que estar disponível para toda a gente 24 sobre 24 horas, a mior das vezes para nada! E aqueles que já perderam todo o pudor e que acham que eu e arua toda onde circulam têm que assistir a todas as conversas , muitas vezes, mais que privadas?!!! E quem lhes disse que eu quero ter parte naquela conversa??? Olha o que foste arranjar com o teu post, abriste-me a porta dos desabafos e eu toca a aproveitar...
Também concordo contigo que agora certas palavras e expressões de tão "adoçadas" parecem o que não são, o que é enganador e até perigoso...
E agora ponto final!!!
Aproveita bem essas jóias aí em casa descansadas que tu bem mereces!!! Boa pessoa e generosa és tu!!!
Beijos.

Carlos Sério disse...

A liberdade não é um fim em si mesmo.
A liberdade é um meio necessário mas não suficiente, para que os cidadãos atinjam as melhores condições económicas, ambientais e sociais, atinjam o maior bem estar em sociedade.
Uma democracia será uma sociedade onde não existe apenas a liberdade individual e social formalizada em Lei, mas uma sociedade onde se pratica a liberdade e estão criadas as condições para a sua prática plena.
E só nestas condições, poderá existir o desenvolvimento económico e social, pleno e harmonioso da sociedade.

A pratica da liberdade condiciona a que os mais aptos ocupem os lugares de maior responsabilidade na gestão administrativa e económica da sociedade, e não sejam preteridos por outros menos capazes porque pertencentes à família dos ocasionais detentores do poder num dado momento. Uma sociedade que selecciona para os altos cargos da gestão do Estado, não os mais aptos mas os partidários ou familiares de quem ocasionalmente detém o poder, não é uma sociedade que pratica a liberdade, não é uma sociedade democrática.
Uma sociedade onde para os ricos e os pobres não existe um igual direito à Justiça, à Saúde, à Educação não é uma sociedade que vive em liberdade, não é uma sociedade democrática.
Uma sociedade que é permissiva com a corrupção e que não se esforça por combatê-la com a maior eficácia, não é uma sociedade que vive em liberdade.
Quando um governo é condescendente com a corrupção, é um governo que atenta contra os próprios princípios da democracia institucional.
Quando uma classe social se permuta no poder, desenvolvendo ao longo dos últimos trinta anos, os mais urdidos mecanismos de privilégios para si própria, enriquecendo à custa dos cidadãos que vem governando, agravando a diferença de rendimentos entre ricos e pobres e retraindo o desenvolvimento económico e social do País, é uma classe política que deverá merecer o desprezo de todos os cidadãos.

Uma sociedade que não se esforça por desenvolver estruturas que a encaminhem para uma maior solidariedade e igualdade social é uma sociedade que caminha em sentido oposto ao da democracia e da liberdade.

Kaotica disse...

Renda

Bendito post o meu que era um desabafo desenfreado com tudo ao molho e com pouca fé em Deus e que afinal cumpriu tão bem a sua missão de pôr outras pessoas a desabafar! Tens toda a razão, parece que o telemóvel se tornou num status que "uns têm, outros... não!" (lembras-te desta publicidade nojenta? - desculpa o termo!) E sabes também já reparei nesses papalvos e patos bravos que gesticulam e berram ao telemóvel para se fazerem notados (quem não reparou?!) - uns pobres de espírito a exibir o mau gosto e a falta de educação (piores que quantos fumadores?) Uma choldra lamentável, minha boa amiga. Uma choldra!
Abraços e uma Páscoa tranquila!

Kaotica disse...

Ruy

Muito obrigada pelo teu lúcido comentário! Aqui no Pafúncio abundam as paixões e por isso nem sempre se consegue atingir a clareza e a lucidez do teu comentário. Nem imaginas como gostei de o ler e de o conservar aqui para que outros o possam ler. Muito, mesmo muito esclarecedor do que seria esperável de uma verdadeira democracia onde houvesse um saudável exercício da liberdade de cada um e um Estado justo e decente. Infelizmente estamos tão desajustados, tão longe que me pergunto se haverá no mundo algum país onde isso aconteça!
Desejo-te um bom feriado e um fim de semana tranquilo.

Anónimo disse...

Não o conheço. Não sei que tempo e energias dedica na defesa dos trabalhadores portugueses relativamente aos senhores, não sei que riscos corre, que testemunhos tem para dar em matéria da liberdade de expressão e outras, mas do Carvalho da Silva sei o suficiente para considerar a sua crítica descabida, injusta e grosseira.
António Marques Pinto

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