O Domingo sempre foi um dos dias mais absurdos do calendário. Mesmo aqueles Domingos em que tudo se repete como um filme muito visto em que nos vemos em família comemorando inadvertidamente o facto de ainda estarmos todos vivos, podem muito bem resultar em momentos absurdos. Muito bem, lidemos então com o absurdo, normalizêmo-lo como a todas as coisas que nos assustam e que acabam mais cedo ou mais tarde por fazer parte de uma rotina. Quando até mesmo o absurdo se converter numa rotina estamos prontos para a morte. Aos velhos, por exemplo, já nada surpreende realmente. São capazes de ouvir as coisas mais absurdas da boca de um político que já nada os espanta. Habituaram-se a conviver com o absurdo, faz parte integrante das suas vidas, na verdade já nem reparam, já não concedem ao absurdo a mesma importância que outras pessoas mais jovens de espírito; os velhos transportam consigo o longo rol de histórias absurdas que conheceram durante as suas vidas, como um lastro e, como o absurdo, por se repetir, se tornou normal, é como se já não tivessem a capacidade para se surpreender… Ah, e isso pode não ter nada a ver com idade. Há pessoas que já nascem envelhecidas, desprovidas de espanto, não há nada a fazer.E no entanto o absurdo existe e pode até mesmo converter-se num poderoso efeito capaz de nos envelhecer mais rapidamente. Ou melhor, é como o comboio que parece andar mais depressa quando há música a tocar mas que na verdade não anda, só que ao contrário… vou ver se explico. É assim: quando uma pessoa atenta ao que está a ouvir, por exemplo, num telejornal vê todos os dias tristes imagens de violência e guerra, ou atentados, ou derrocadas, ou mais desemprego e impostos, etc, etc, essa realidade banaliza-se, ou seja converte-se numa espécie de normalidade até nos afectar directamente a nós. Mas isto já é conhecido, já muita gente se apercebeu do risco que a informação corre de se tornar num mosaico de fugazes banalidades diárias com tendência a perderem o significado… não era esta problemática que eu queria observar! O comboio disfórico que eu queria para a minha analogia às avessas era de outra natureza. Ao se introduzir uma notícia completamente absurda no meio de um telejornal, produz-se o efeito do absurdo. Com o aumento da frequência das notícias absurdas no meio das outras, o absurdo tende a dissipar-se; o efeito de surpresa causado pelo absurdo deixa de produzir-se e o absurdo, ao deixar de ser um registo surpreendente, passa a ser uma coisa igual às outras; o comboio desacelera e já nem mesmo a música surpreendente do absurdo o faz mexer. O absurdo feito rotina desacelera a nossa capacidade de nos surpreendermos seja com aquilo que for. Com o passar do tempo, com o espectáculo diário do absurdo e com a sua proliferação, ficamos a saber que no mundo em que vivemos não há nada mais normal que o absurdo. O efeito anula-se e o comboio em que seguimos pára igual a si próprio, em silêncio. O absurdo iguala-se à normalidade. Já nada nos surpreende, nada nos faz mexer.
A não ser a história verdadeira do campeonato mundial dos sem-abrigo. Quem se lembrou de organizar tal coisa nunca se lembrou de usar o dinheiro que gastou para os abrigar. Não nos admiramos, é "normal"! Mas, por azar da organização, a nossa selecção nacional de sem-abrigo abandonou o hotel alegando falta de condições de alojamento dignas (!) Finalmente aquela gente estava perante uma situação em que podia reclamar por falta de condições. É que na rua onde vivem não há livro de reclamações, tinham que aproveitar o momento certo para poderem finalmente exercer esse direito; a possibilidade de exercerem qualquer direito que seja deve ser uma coisa importante para os sem-abrigo, que normalmente parece não terem quaisquer direitos. E reclamaram, não lhes pareceu absurdo! Ouvi a notícia com a maior das surpresas, como um total absurdo; ri-me a bandeiras despregadas da sucessão de absurdos da notícia… e no entanto agora analisando-a desmistifico o seu absurdo e considero-a "normal". É essa a natureza e a força do efeito do absurdo no meio de outras notícias: tornado normal, em comparação tudo se torna ainda mais normal e aceitável. Aprendemos a conviver com o absurdo como com a mais dura realidade e, mesmo se ainda nos rimos, pulamos e avançamos com a música surpreendente do absurdo, tal como o outro, nem por isso o nosso comboio anda mais depressa. Apeamo-nos e a realidade é que tudo continua igualmente sinistro à nossa volta. É essa a sua força. Com ou sem absurdo, nada se altera. Por isso eu gostei especialmente da atitude de revolta dos sem-abrigo que, apesar de normalmente viverem na rua, não acharam que seria um absurdo reclamar das más condições a que o hotel os sujeitava. Se fossem meros hóspedes, todos achariam "normal"… e sendo sem-abrigo portugueses, será mesmo um absurdo para alguém o facto de terem reclamado?